Sumário
Cultura de Gorjetas
Nos EUA, é praticamente obrigatório dar gorjeta aos garçons e atendentes de bares e restaurantes. É considerado uma ofensa não dar gorjetas, mas por que?
Existe uma categoria de salário chamada de tipping wages, onde o empregador pode pagar ($2.13 por hora) abaixo do salário mínimo nacional (de $7.25 por hora) alegando que esse é um cargo que recebe gorjetas. (Válido para funcionários que recebem ao menos $30 de gorjeta).
Ou seja, se todos pararem de dar gorjetas, os funcionários não teriam dinheiro para sobreviver dignamente, e receberiam um salário de fome.
Mas peraí, desde quando é função do consumidor arcar diretamente com a responsabilidade do salário do funcionário? Então, não é.
O que acontece é que a cultura da gorjeta está tão bem difundida, que os donos de bares e restaurantes conseguiram convencer a população de que é correto pagar um salário de fome aos seus funcionários, pois a cultura americana e o “bom senso” se encarregariam de completar a renda mensal de seus funcionários através das tips (gorjetas).
Chega a soar absurdo, mas é verdade. Não só os donos, mas também os funcionários E clientes americanos acreditam que gorjeta é a melhor solução.
E por que não lutar por salários melhores?
Bem, existe outro senso comum de que a luta por direitos é impossível.
É mais fácil convencer TODA a população de que NÃO dar gorjeta é errado do que obrigar os empregadores a melhorar as condições de trabalho (salário)
Eu sei que você deve estar se perguntando: “O que raios a religião tem a ver com essa cultura de gorjetas?”
Calma, chegaremos lá!
Religião
Se você associou gorjetas com religião pela bondade dos fiéis, ou que pessoas religiosas tendem a dar mais gorjetas, você errou.
Não que seja mentira, mas o foco desse post é outro.
Historicamente, a religião foi usada como desculpa/motivo/razão para justificar atrocidades, ou injustiças sociais ilógicas, vamos aos exemplos:
Monarquia
Durante a idade média, o direito ao trono de rei sempre foi colocado como inquestionável pelo clero (religião) por ser um direito assegurado e escolhido por Deus.
Ao colocar a vontade divina em jogo, criou-se um senso comum de que tais privilégios, como comida em abundância, terras e artigos de luxo eram algo natural e merecido à toda a família real e seus chegados (nobres).
Caça às Bruxas
Entre os séculos XV e XVIII, particularmente intensa na Europa e na América do Norte, vitimou milhares de pessoas, principalmente mulheres. Elas foram acusadas de bruxaria e executadas.
Esta perseguição foi endossada por líderes religiosos, baseada em crenças supersticiosas e medo do desconhecido.
Inquisição
A luta contra a heresia, onde os "infiéis" eram perseguidos, caçados, julgados, torturados e executados, tudo em nome do senso comum de que aqueles que não seguiam a religião ameaçavam sua existência e, por conta disso, mereciam tais atrocidades.
Foi criada pela Igreja Católica no século XII na França e espalhou-se pela Europa. A versão mais conhecida é a Inquisição Espanhola, estabelecida em 1478, que visava manter a ortodoxia católica na Espanha e ficou notória por sua severidade e perseguições, inclusive contra judeus e muçulmanos.
A Inquisição Romana, mais tarde, lidou com a Reforma Protestante e a censura. O processo inquisitorial incluía acusações secretas, tortura para obter confissões e variadas punições, desde penitências até a execução.
A Inquisição diminuiu no século XVIII e foi formalmente abolida em diversos países até o século XIX.
Colonialismo
Você provavelmente já estudou sobre o período colonial, através do eufemismo popular "As Grandes Navegações".
O que, geralmente, passa desapercebido nos livros de história é que:
- Foi um período extremamente violento, cheio de torturas, invasões, estupros, assassinatos e trabalho forçado, praticado pelos Europeus em diversos países.
- Foi amplamente aceito, incentivado e justificado pela Religião
Não por acaso, a primeira construção das terras colonizadas geralmente eram Igrejas.
Acreditava-se que o Índio (ou povo colonizado) não possuía alma e, consequentemente, não merecia ser tratado como ser humano.
A religião foi usada como justificativa para a conquista e subjugação de povos indígenas. Isso incluiu a imposição forçada da religião cristã, muitas vezes acompanhada de violência e exploração.
Escravidão
Assim como na época colonial, a religião cristã também teve papel crucial durante o período de escravidão, com passagens bíblicas sendo frequentemente usadas para justificar as atrocidades cometidas na épocas.
Alto lá
Não pretendo me extender em cada um desses assuntos, a ideia é passar uma visão breve de como a crença e a religião impactou a vida de milhares de pessoas e foi exaustivamente e frequentemente usada para justificar atos atrozes, ilógicos e bárbaros.
Esse texto é baseado na minha visão pessoal sobre religião e meu conhecimento de eventos históricos importantes impactados por ela, não se trata da verdade absoluta nem significa que fará sentido para você.
Qual é a relação?
Ambos abusam e são dependentes do senso-comum para fazerem sentido.
Se apenas uma única pessoa tivesse o hábito de dar gorjeta enquanto todas as outras optassem por apenas pagar a refeição, o argumento de que: "É justo pagar um salário abaixo do mínimo, pois se trata de um cargo que recebe gorjetas" se tornaria absurdo e inaceitável.
Se apenas uma única pessoa defendesse o direito à fartura, terras e joias por uma família, enquanto o resto da população passa fome, certamente seria classificada como louca e ficaria fácil de enxergar o absurdo de tal afirmação, seria inaceitável.
O que torna/tornou ambas afirmações aceitáveis/comuns? Por que essa se tornou a definição de "normal"?
Meu palpite: O senso comum e a falta de questionamento.
Ao aceitar inquestionavelmente aquilo que outras pessoas tomaram como verdade, tais atrocidades, facilmente rejeitadas quando analisadas em isolamento, transformam-se em algo não só aceitável, mas sim algo inquestionável, tão poderosos e intrínsecos à convivência humana que é mais fácil acreditar em algo ilógico (como esperar que todas as pessoas darão gorjeta, ou milhares de pessoas aceitarão passar fome) do que acreditar na alteração desses conceitos.
Tanto a Cultura da Gorjeta quanto a Religião usufruem dessa ferramenta de manipulação social para perpetuar sua existência.
Como funciona?
Empatia
As práticas exigem uma certa empatia para com o outro, que rapidamente se transforma em coerção, vou explicar!
Gorjeta
Ao deixar de dar gorjeta, você está impactando negativamente no salário do atendente.
Ela torna o consumidor diretamente responsável pela sobrevivência e bem-estar do atendente.
Religião
Ao rejeitar a religião, você causa desconforto nos praticantes. Você está ativamente questionando algo que eles já tomaram como verdade.
Ao recusar uma conversa na rua, fechar a porta para um fiel ou simplesmente não seguir os ritos da religião, você está ativamente sendo o causador de incômodo na felicidade e bem-estar alheio.
As pessoas não gostam de se sentir culpadas pelo mal-estar alheio, logo, essa empatia forçada rapidamente se torna uma coerção.
Fiscalização
Não basta apenas participar/acreditar, é necessário também fiscalizar os não-praticantes, porque se a não-prática ficar mais popular do que a prática, ficaria evidente de que o praticante foi enganado.
É mais fácil forçar a prática aos não-praticantes do que assumir que esteve enganado e renunciar aos hábitos pessoais.
É mais fácil convencer a população de que a gorjeta é necessária do que obrigar os empregadores a melhorar os salários.
É mais fácil convencer a população de que a religião é inquestionável e os problemas do mundo são culpa do desejo divino ou livre arbítrio do que debater esses problemas analiticamente, sem escondê-los atrás de seres poderosos e tentar achar soluções que dependam única e exclusivamente dos seres humanos.
Vou ficando por aqui
O meu pensamento acaba aqui, resolvi escrever esse post para digerir o assunto e tentar entender melhor essa estranha conexão que vi acontecer na minha mente no caminho para casa, às 07 da manhã de uma quinta-feira chuvosa, pós treino de crossfit, quando li um Tweet sobre a cultura da gorjeta.
Não acredito que essa prática seja exclusiva às duas "entidades" que analisei (de forma bem pessoal) nesse post, imagino que existam outros conceitos que tomamos como verdade inquestionável e absoluta por conta do senso-comum, você sabe de algum? Deixei aí nos comentários.
No mais, agradeço por ter lido esse devaneio maluco, valeu e grande abraço!