A arte é a gaze da minha alma, e isso só para, quando dispara.
- Rubia, 2022.
Quem sou eu?
Antes de tudo, é importante falar um pouco sobre mim, e porque escrevo esse artigo.
Meu nome é Lissa, sou desenvolvedora, produtora de conteúdo sobre tecnologia, palestrante, Community Manager, dentre outras coisas, mas por enquanto, apenas é relevante que eu sou uma pessoa trans, escritora e artista, especialmente poetisa.
Motivação
Em janeiro de 2022 publiquei um artigo chamado TRANSquimia: do carvão pro diamante, que falava sobre o pouco que sabia sobre pessoas trans, pois naquela época faziam apenas 26 dias que eu havia transicionado socialmente.
Durante muito tempo, pensei que seria bom escrever uma segunda parte dele, falando sobre a minha experiência, aprendizados, e processos, e agora, um ano e meio depois, vou concluir essa etapa do TRANSquimia.
Não planejo falar sobre números, gráficos e vivências que muitas outras pessoas falam, pois mesmo que esses fatos sejam importantes, quero abordar outras coisas, tanto para pessoas trans, quanto cis que possam ler esse artigo.
De antemão, agradeço pela leitura.
onde nossos corpos se encaixam
Vamos fazer um exercício, eu queria que você se perguntasse O quê é gênero?, respondesse essa pergunta para si (ou se quiser, pode comentar no artigo), e depois continuasse a ler.
Gênero para mim é onde podemos colocar nossos corpos dentro de uma sociedade, onde cada encaixe é diferente um do outro, na sua cor, cheiro, textura, profundidade, e sentido.
De forma menos metafórica, papéis sociais que idealmente escolhemos estar e nos identificar. Momentos conosco que podemos aproveitar, e com outras pessoas dançar, com estilos diferentes, mas pra isso não ligar.
Ninguém nasce com roupa, estilo, touca ou um vestido. Todes nascemos nada, e logo, sem gênero, ou melhor, NÃO-gênero.
Esse processo de colocarem um gênero em nós, e aceitarmos ou negarmos isso durante a nossa vida é social. É com a observação e alienação dos outros e de nós à um mundo regrado e taxonômico, que independente de quem somos engole nossas escolhas e possibilidades.
Dessa forma, nos tornamos apenas receptáculos vazios de quem poderiamos ser, e fica a nós o projeto de percebermos isso, e recuperarmos a escolha sobre nossos corpos, e encaixarmos eles onde bem entendermos.
É por isso que desconstrução é importante, mas também a demolição e construção sobre o pó daquele conceito que derrubamos. Pois no fim se torna algo muito raso de reformar um quarto e manter todos os outros iguais.
Não adianta eu ter uma leitura dessa sobre gênero, e não ter algo similar à racialidade por exemplo, pois no fim tudo vem da mesma raiz, das nossas bases sociais.
nossa solidão
Esse período de um ano e meio entre o primeiro TRANSquimia e este foi bem difícil, principalmente pela solidão que eu sentia.
Ficava ao lado dos meus abusadores, e sem nenhuma pessoa que eu confiava por perto, e isso me machucava muito. Como se nada fosse acabar, e que eu iria repetir um passado que não terminei. Mas uma coisa me ajudou muito, produzir arte.
Por ficar muito tempo sem poder fazer nada em salas de aula, sem amigos, e sem interesse pelo que era falado, eu me fechei em um caderno meu, e comecei a escrever poesia.
Nunca havia escrito antes, e apenas havia consumido poesias em forma de letras de música, mas mesmo assim comecei, indo do meu passado, até meu presente.
A primeira que foi escrita ainda tenho registro por sinal, sendo CARVÃO:
10 meses de gestação
Nasci sem cores
Direito de ser eu? Não. (2x)Quando eu era criança
eu tinha vergonha de tudo
vergonha de mim
vergonha do mundo
eu não brincava
espelhado nos adultos que gostava
diferente dos meus colegas
que me jogavam no escanteio
eles no meio
eu no meu cantomeus pais não fizeram nada
me trancavam dentro em casa
criando trauma que hoje eu canto
amizades todas na internet
por muito tempo
vi só dois planos
como sonho
queria ser cientista
descobrir um mundo novo
o paraíso na minha vista
viajar em todas as estrelas
buscando respostas pra tudoEm um outro momento
No fim de janeiro
Num outro universo
descobri o mundo inverso
colegas diferentes de mim
via aquilo como meu fim
perdendo a emoção
a única coisa que eu amava
por aquilo que eu vivia
via minha chance esmagada
de ser feliz um diaEntrando em desespero
Como uma depressão
pra todas as perguntas eu só via não
chegando ao fundo da singularidade
do poço da minha solidão
de frente à cachoeira
sentia a brisa no ar
a queda da água
minha alma se inclinava
repousava sob a minha morte
sobre a minha dor
olhava com temor
pro fundo da cachoeira
vontade de morrer
medo de perder
a razão falava que sim
meu coração falava não
minha história dizia sim
uma energia dizia não
na gangorra da vida
em menos de 3 minutos
vivi e revivi 3 vezes
cada segundo trinta vezes
a escolha que eu ia tomar
acabar com a minha dor de uma vez
ou deixar tudo aquilo continuar
com a esperança de um dia melhorar
da minha dor esvaziar
do vaso quebrado da minha almaE no fim, eu tomei uma decisão
continuar como carvão
caminhando nessa terra
mesmo que em vão.
Mesmo de maneira bem amadora e sem estudo, eu continuei, porque no fim a arte é assim, como a vida, surge do calor em nossa profundidade, e se torna coisas que nunca poderíamos imaginar.
afunilamento
Continuei escrevendo, e as minhas dores foram aumentando. De forma menos poética, minha relação com meus pais foi piorando, e eu não conseguia descansar o suficiente. Mas mesmo assim continuava trabalhando em meus projetos de comunidade e conteúdo, algo que não vejo como um erro (na verdade, um grande acerto) mas que agravou a minha situação.
Em novembro de 2022, 11 meses após a minha transição, comecei a procurar emprego, com a finalidade de poder sair de casa de uma forma mais segura, e por falta de tempo e cansaço, parei de produzir as minhas coisas.
Isso fez eu me sentir inútil, fraca, e sem valor, porque eu achava que nossa importância estava na produção, independente de como estamos emocionalmente e fisicamente, como se a nossa mente não fosse a gente, e pudesse produzir paralelamente com a nossa morte.
Isso me fez afogar ainda mais nos meus textos, e a cada processo seletivo que eu era negada, era como se uma corrente se quebrasse, e me empurrasse mais para meu fim, caindo em pontas de marfim, que acabassem com meu mal alí.
de novo
tenho os mesmos medos
de novo
volto pra insegurança
de novo
minha energia decai
de novo
me rastejo até a cachoeira
de novo
olho pro fundo dela
de novo
e me vejo lá
de novotão cansada que não consigo levantar
tão cansada que não tenho mais ar
deito na cama tentando sonhar
mas nos meus maiores medos só consigo pensarnão temo o mar
não temo o escuro
muito menos assombração
mas tenho medo da isolaçãotenho medo de não ter ninguém
tenho medo de perder quem amo
tenho medo de não ser quem não sou
tenho medo do amortudo que eu sei
tudo que eu amo
tudo que toco
tudo que eu destruo
no fim, é eu
é tudo eu
eu sou tudo, e tudo sou eu
eu me amo
eu me odeio
eu me idolatro
eu me ofendo
eu.tenho medo de perder o pouco de eu que tenho
por pessoas que não conhecem eu
muito menos o meu euse matar não é cometer uma loucura
loucura é o que vem antes
toda minha vida numa só fervura
minhas mãos necrosadas por barbantespor um lado quero viver
por um lado quero sair
por um lado quero sentir o cheiro do ar
por um lado quero viverquero parar de não ter energia pra limpar meu quarto
quero ter energia pra andar
quero ter vontade de cozinhar
quero parar de só divagarmas não consigo
meu cansaço não permite
deito na cama
e lá eu fico
sem conseguir me defender
eu fico
deitada
dentro de um caixão de gesso
e com um tampo de madeira
esperando meu corpo decompor
e a minha arte sair das minhas veiaseu entendo a preocupação
e eu não gosto desse tipo de ameaça
eu sei que não tenho noção
do tipo de risco que gera minha pirraçamas a mão fica fraca
medrosa, e com medo
pende a voltar a certeza
a certeza da minha morte
à incerteza da vida plenao amor é o que me mantém viva
mas também é a minha sentença de morte
Durante esse processo, que eu estou abordando rápido mas durou no mínimo um ano, me fez aprender muito sobre mim mesma, sobre o meu amor, sobre como eu amo, sobre a arte, meus desejos e demônios, tudo, sobre tudo.
E no fim, mesmo que isso tenha me machucado de milhares de formas, foi importante para mim.
Falando de maneira mais esotérica, não acredito que nada na nossa vida aconteça por nenhum motivo. Tudo tem alguma razão e plano por trás, e na maior parte das vezes, não precisamos descobrir isso.
O capitalismo nos força a sempre escolhermos entre a segurança e a liberdade, nos mantermos com nossos abusadores, ou sair da nossa cidade, pra buscarmos nossos amores. É sempre assim, exceto se você tem dinheiro, e essa escolhi que eu fiz.
próximos passos
Agora, com emprego, renda, e pessoas pra me acolher, as mesmas que eu escrevia poesias falando sobre amor, eu posso ver um futuro para mim, fora do fundo de uma cachoeira.
Não falo isso em um sentido motivacional, mas se tem algo dentro de você, que mesmo de maneira tímida brilha na escuridão, tente alimentar esse chama, focar esse brilho, alastrar a flama, e iluminar um caminho, por onde nós podemos trilhar. E mesmo na melancolia, sonhar em um dia pensar, que não mais estamos mortas, mas sim vivas, muito vivas.
Se precisar, use a arte como forma de sobrevivência, com poesias, prosas, desenhos, música, qualquer forma que você consiga expressar seus sentidos.
Faça isso primeiro para você, e se quiser, no fim ainda terá um documento que conta a sua história de uma forma que você nunca conseguiria escrever sem passar pelos seus piores momentos com um caderno na mão.
Eu por exemplo compilei minhas poesias em um livro chamado ROCHA ÍGNEA, que agora posso ler, e lembrar desses sentimentos, momentos, melancolias e felicidades, e pensar que hoje posso ser mais feliz e realizada, e caminhar pra um futuro que brilha aos meus olhos, e independente do seu problema, situação ou vulnerabilidade, acho que podemos tentar compartilhar esses sentimentos.
ARQUEIRA
era uma vez
uma arqueira muito conhecida
famosa pela capacidade
a flecha polida
pronta pra sagacidademas um dia
ela foi sequestrada
raptada e jogada
no deserto infinito
perdida deu grito
desesperada em conflito
queria um ouvidochegou uma tempestade de areia
envolveu ela como uma teia
a boca seca ficou feia
sem conseguir sair
a onda de choque encadeia
as dores no corpo latejapedras começam a voar
ganhando velocidade suspensas no ar
ponta de obsidiana girando no corpo
duas delas entraram dentro dos olhos
como a ponta de uma flecha me deixou cega
estática compondo toda minha vistaa areia se mistura com sangue dela
ensopada de sangue até a patelatentava correr
sem sentidos caiu
mais areia entrou
o sangue já secou
o olho tá aberto
o trauma é certo
ela se enterrou
pra se esconder do medo
evitar outras pedras
salvar sua vidadepois de um tempo
passou a tempestade
ela saiu
sentia a luz na pele
mas não na visão
sentia o deserto na mente
mas não via cor"como vou ser arqueira agora
se a visão já não tenho mais?
como vou ser o que já fui
se hoje não tenho mais?"mas ela ouve um chocalho
um som característico
sabia apontar de onde vinha
10 metros e meio de distância
na sua esquerda
sentia a malícia
pegou seu arco
pegou sua flechapreparada para atirar
apontou na serpente sem ver
sentiu a ponta da flecha
como uma extensão da sua alma
respirou para preparar o disparo
sentiu o ar
e soltouescutou a serpente agonizando de dor
naquele momento entendeu
ela não precisa ver a cor
não precisa vê a luz
ela é a própria cruz
se os outros sentidos melhorar
da visão nunca mais vai precisar
sendo arqueira sabe atirar
a experiência é só adaptar
pra um mundo rodeado de escuridão
a flecha de fogo é o coraçãoé pra isso ela vai sair
desse deserto ela vai fugir
a luz no fim do túnel ela não vai ver
mas o calor do afeto ela vai sentir
porque no fim
a arqueira sou eu
E além de mim, a arqueira somos nós.
Brilhem meus amores, vamos tornar esse mundo nosso, demolir ele, e do pó plantarmos nossos desejos.
Qualquer pensamento que você quiser compartilhar, só comentar aqui no artigo que ficarei muito grata de ler.
Obrigada.